Numa aula, sobre a origem das diferentes fontes de Direito e as diferenças entre elas, meu saudoso mestre, indicou-nos um vídeo sobre o filme – Balada de Narayama. Nesse filme a idéia era observar como se estabelece e funciona o direito consuetudinário. O filme é rodado numa aldeia japonesa, localizada nas montanhas, bem isolada e de difícil acesso, de costumes peculiares e radicalmente conservadores.
Entre as profundas diferenças existentes da chamada civilização ocidental e mesmo da oriental, um fato se destacou para mim - o costume de uso do chá quente servido em uma cumbuca, onde todos bebem sentados no chão com as pernas entrecruzadas como na posição inicial da prática de ioga.
Quando ocorre uma transgressão na convivência entre os habitantes daquela aldeia, o caso é indicado para julgamento. Essa tarefa cabe ao conselho dos anciãos, aquelas pessoas mais idosas, por conseguinte, as mais vividas e experientes, escolhidas entre os membros da comunidade. Conhecedoras dos fatos e dos costumes arraigados, elas se colocam em um local silencioso, fechado, todos sentados em círculo, e o presidente do conselho inicia uma rodada da bebida do chá quente, antes do inicio dos trabalhos de julgamento. Essa prática inicial e prévia ao ato de julgar, não é meramente um costume, esse chá é mais do que emblemático e simbólico, ele tem propriedades na infusão de ervas que o compõem, cuja finalidade é induzir à concentração. Nesse ato imagino que o sujeito julgador entra numa atmosfera de conversa com os seus próprios sentimentos, com o seu âmago, com a sua consciência, para de lá, com toda a isenção e neutralidade que exige e impõe o ato de julgar, deduzir, sim deduzir porque esse é o método usado, do genérico para o especifico, e ao final concluir pelo seu voto na decisão que vai "prolatar" a sentença definitiva aplicável ao transgressor.
Portanto, aquele chá, servido quente, em cumbuca, bebido por todos, da mesma fonte, da mesma forma, em círculo fechado, propõe, certamente, o consenso ou a unanimidade, na comunhão de pensamentos para a salvação regular do costume instituído e defendido e a permanência da estabilidade e da paz social, funções precípuas da ordem e do progresso, inclusive, por coincidência, um lema positivista, engastado em nossa bandeira brasileira.
Como gaúcho, tracei imediatamente um paralelo entre aquele chá oriental e o nosso chimarrão de origem indígena, costume nativo, portanto, não veio de estranhas terras, não fora importado, está na alma, mais que uma referência na gastronomia, na essência cultural, tem seus significados, também mais do que emblemático e simbólico, tem propriedades medicinais. Estudos científicos em laboratórios de química revelaram suas elevadas propriedades curativas no combate ao colesterol, além da gama de minerais e vitaminas, como as do complexo B, essenciais na transformação enzimática dos alimentos e na assimilação do metabolismo.
No significado agregamos ao chimarrão, muitas nuanças psicológicas, outro dia ainda teci este comentário: de que para se conhecer e entrar em relação com a liberdade, fraternidade e igualdade, postulados republicanos que determinaram a transformação do mundo dominante da Europa no século XVIII, não é preciso se viajar a Paris, nem ter estado na Revolução Francesa de 1779. Aqui mesmo, no Rio Grande do Sul, ao derredor de um fogo de chão, sustentado por um "pai de fogo" de madeira bem seca e curada, permanente gerador do braseiro, do calor que aquece a água da "cambona" para que, de dia ou de noite, cedo ou madrugada, sirva de albergue ao desamparado, de paragem ao viajante, ao notívago, aos insones, no passado aos tropeiros, chasques, forasteiros, visitantes, todos enfim, conhecidos e estranhos, irmanam-se ao derredor do fogo, "nas longas noites pampianas de frio e de cerração".
Todos os poetas nativistas celebraram o chimarrão! Essas inspirações poéticas demonstram a importância cultural dessa beberagem que nos identifica, simbolizando hospitalidade.
Democrático, no galpão, de manhã bem cedo, patrão, capataz e peonada, todos estabelecidos nos seus bancos, chimarreiam, naquele momento, sem hierarquia, enquanto se destinam as lidas campeiras, das tropilhas, gados, rebanhos, das condições dos rincões, potreiros, invernadas; tudo das estâncias, das fazendas, das tropas de gado gordo a vender, de gado magro a adquirir, das reposições. Assim se fez a primeira economia do Rio Grande do Sul, no inicio, quando tudo era pecuária para a sustentação da Província.
Dessa roda, desse círculo de concentração matutina, donde emanaram e emanam as decisões, aos goles sorvidos do chimarrão, o corpo se aquecendo e a mente se inspirando para o progresso e a defesa deste pago.
E quando a exigência do momento tornou-se imperativa, como nas guerras, esta bebida foi fonte catalisadora das decisões mais cruciais e definidoras da história que herdamos e hoje compartilhamos. Viva o chimarrão!
Autoria: Ed Corsan (19/06/2012)
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